segunda-feira, 12 de abril de 2021

Há dores que viciam


Tudo na vida é desconforto. Quer algo mais desconfortável do que passar  fio dental? Mas não passá-lo pode gerar desconfortos ainda mais sérios. Esse é um tipo de desconforto necessário. Mas existe uma outra categoria de desconforto: aqueles em que escolhemos sentir. Quem cresce inserido nessa categoria, por vezes é laçado de tal forma, que chega a ser quase impossível querer se sentir confortável novamente. Digo que o ballet clássico para mim é uma mistura de arte marcial com quartel de exército. Há dor, mas também há música (das mais belas que já existiram). Tocamos cada nota musical através dos passos executados. Entendemos de bolhas nos pés e contraturas nas costas, mas também entendemos de sentimento e alma. Conhecemos nossos joelhos mais do que qualquer outro ser humano, mas também conhecemos tão bem nossos próprios corações. Eu cresci na sala de aula de dança, lidei com muitas frustrações de todos os tipos possíveis, mas também com lindas realizações que não se comparam a nada de tão incríveis. Me fiz professora de ballet clássico por cinco longos anos, dance captain por mais uns quatro, e coreógrafa e diretora de movimento por uma vida. Eu já tentei negar, mas a dança vive em mim e talvez seja uma das partes mais doloridas e mais verdadeiras de mim. Há um ano meu corpo não se expande, não tem espaço, não dança, não sente o desconfortoj de que necessita. Será que conseguirei dominar minha técnica básica novamente? Dá medo de eu não conseguir voltar a ser eu. Enquanto meu corpo se sente atrofiando, meu coração o acompanha no mesmo acorde. Há dores que viciam. (Francis Helena Cozta)