quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Invisível

Ao contrário do que talvez possa parecer, o deslumbramento e a “entidade artista-famoso” são dispensáveis para o real ofício do ator. Para contar uma história a partir da perspectiva da vida de outrem, a vaidade mais atrapalha do que ajuda. Tudo o que é feito em cena deve ser a favor da obra e não baseado em escolhas pessoais. As escolhas inteligentes são baseadas no que contribui para contar aquela história e não para suprir carências descontadas em cena. O desafio da profissão é despir-se de tudo que sou para adentrar num novo universo, e isso requer humildade. Para alcançar um mínimo de coerência cênica, é necessário concentração no aqui e agora. Abster-se das distrações é fundamental mesmo que elas venham como algo extremamente tentador, disfarçado de oportunidade ou de elogios vãos que parecem atalhos para algum tipo de status. O foco deve estar no jogo e não no que está em jogo. Para estar em cena, existe um trabalho pregresso totalmente solitário, sendo doloroso e prazeroso ao mesmo tempo. É preciso ser levado a sério, pois a personagem só é vista quando o ator desaparece. Que eu seja cada vez mais invisível. (Francis Helena Cozta)

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Ser


 Não negocie ser quem você realmente é para agradar expectativas criadas por terceiros. Tenha coragem de decepcionar outrem, liberte-se da imposição da explicação, da justificativa e da satisfação, e tenha força para ser autêntico, mesmo que isso pareça incoerente aos olhos dos demais. Aceite que especulação, dedução e invenção sempre existirão. O outro pode ter visto fotos da sua vida, mas não viu o filme da sua história. Seja quem você sempre quis ser, e mesmo que isso tenha um preço, ele é mais “barato” do que o preço pago por ser quem os outros querem que você seja. Quem leva a sério os insultos é porque também leva a sério demais os elogios e vive em função de recebê-los. (Francis Helena Cozta)

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Dessa Vez

Não tem a ver com o resultado. Espera. Na verdade, tem sim. Não o resultado do que o outro vai achar, mas do que se consegue individualmente durante o processo. Parece clichê dizer que foi diferente, pois de alguma forma sempre é. A questão está no que foi diferente dessa vez. Quase dois anos sem ser quem se é, exatamente não sendo como si próprio. Eu sei, parece loucura (e talvez seja), mas tem total lucidez. O astigmatismo que não existe mais, o misticismo que se foi, a nova percepção, o outro tipo de envolvimento, a nova sensação de ser quem se é agora. Está tudo diferente do diferente que já seria. A paixão e o encontro consigo permanecem intactos, mesmo que também estejam diferentes. Parece paradoxal, mas não é. Eu mudei, tudo mudou, mesmo que algumas coisas jamais mudem (mesmo que estejam diferentes). Experiência íntima e particular, mesmo sendo coletiva. Tudo faz sentido. O Sol brilhava lá fora. Eu subia no palco. (Francis Helena Cozta)

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Talvez

Se passos antes não fossem dados, hoje a compreensão seria diferente e assim de melhor assimilação. Haveria (talvez) um certo frisson inerente ao ser antes sem tantas elocubrações e com mais devaneios, por assim dizer. O tempo, os livros, os novos aprendizados já enraizados, os novos ensinamentos já incorporados, que agora estranhamente parecem mais atrapalhar do que engrandecer o processo. Só parecem, pois talvez, não seja exatamente assim que aconteça. De fato está diferente. O desafio agora é outro. Como conciliar tudo isso? Ter a certeza de que quase nada está sob o autocontrole, para esse momento, chega a ser como um afago macio. Eu não disse que está diferente? Espere, talvez (mais um vez) esteja exatamente aí a fonte da possibilidade de aprendizado. Bom, nesse quesito pode se dizer que nada mudou, pois a princípio de onde nada viria, sempre se dá um jeito de tirar proveito. Dessa vez sem fantasia, e é exatamente aí que talvez entre a “magia”. (Francis Helena Cozta)

O que Ninguém Vê

Me lembrei de uma peça que fazia anos atrás onde tinha uma bonita movimentação do cenário feita pelo elenco em cena. Eram como blocos muito grandes, pesados e difíceis de carregar. Deles, saía um pó que ia sujando muito o palco ao longo da peça. A cada movimentação, a poeira aumentava. Lembro de fazer a peça com chiclete no canto da boca para me “hidratar” de alguma maneira, e tomava água e fazia inalação até o último instante de entrar em cena, pois sou bem alérgica e morria de medo de perder a voz. Ficamos em cartaz num teatro tradicional (que não existe mais) no centro de São Paulo. Os blocos eram tão grandes que tinham de ser retirados pelo saguão até o estacionamento, pois não cabiam na coxia. Após o espetáculo, os mais fortes carregavam os blocos, enquanto o restante (elenco e técnica) esfregavam o chão do palco. Era poeira grudada que não acabava mais. Ironicamente eu fazia um famosa campanha publicitária de produto de limpeza na tv. Usávamos esse, dentre outros produtos para esfregar o placo até sair todo o pó. Tínhamos que entregar o palco após a peça como o encontramos. A administração do teatro exigia isso da nossa produção. Nos limpávamos na medida do possível, passávamos perfume e íamos receber o público no saguão do teatro. A espera um tanto longa gerava o questionamento sobre a demora dos atores para receber a plateia. Mal sabiam eles que estávamos agachados esfregando as tábuas das quais havíamos pisado para fazer o espetáculo do qual eles tinham acabado de aplaudir. O aprendizado da vida muitas vezes vem através de rituais “sagrados” como esse: o de esfregar o próprio local de trabalho antes de “ser recebida pelo público”. (Francis Helena Cozta)

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Há dores que viciam


Tudo na vida é desconforto. Quer algo mais desconfortável do que passar  fio dental? Mas não passá-lo pode gerar desconfortos ainda mais sérios. Esse é um tipo de desconforto necessário. Mas existe uma outra categoria de desconforto: aqueles em que escolhemos sentir. Quem cresce inserido nessa categoria, por vezes é laçado de tal forma, que chega a ser quase impossível querer se sentir confortável novamente. Digo que o ballet clássico para mim é uma mistura de arte marcial com quartel de exército. Há dor, mas também há música (das mais belas que já existiram). Tocamos cada nota musical através dos passos executados. Entendemos de bolhas nos pés e contraturas nas costas, mas também entendemos de sentimento e alma. Conhecemos nossos joelhos mais do que qualquer outro ser humano, mas também conhecemos tão bem nossos próprios corações. Eu cresci na sala de aula de dança, lidei com muitas frustrações de todos os tipos possíveis, mas também com lindas realizações que não se comparam a nada de tão incríveis. Me fiz professora de ballet clássico por cinco longos anos, dance captain por mais uns quatro, e coreógrafa e diretora de movimento por uma vida. Eu já tentei negar, mas a dança vive em mim e talvez seja uma das partes mais doloridas e mais verdadeiras de mim. Há um ano meu corpo não se expande, não tem espaço, não dança, não sente o desconfortoj de que necessita. Será que conseguirei dominar minha técnica básica novamente? Dá medo de eu não conseguir voltar a ser eu. Enquanto meu corpo se sente atrofiando, meu coração o acompanha no mesmo acorde. Há dores que viciam. (Francis Helena Cozta)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Focus

Não te confundas, o astigmatismo se foi. Não te disperse, já dominas a concentração. Não te distraia, os interesses são concretos. Não te abandones, descobriste tua coragem. Não te enganes, aprendeste sobre discernimento. Não te acomodes, há tão mais. Não te conformes, percebeste a amplidão. Não te desfoque, pois descobriste que o que amas é o percurso. (Francis Helena Cozta)

Recorte

A pandemia está prestes a completar um ano. Quando lemos essa frase solta nos parece tão perturbador e de fato é. Exatamente por isso me peguei pensando sobre o tempo. Sabe quando lemos livros de história e surge algo como “aqueles foram longos anos de recessão”, ou “aquela guerra durou cinco anos”, nos parece um pequeno recorte de uma história longínqua e quase fantasiosa. Quando estamos “distantes” de algo, nos parece quase inexistente. “O que são só cinco anos dentro da história da humanidade? Eram outros tempos e as pessoas deviam encarar o tempo de um jeito diferente.” Quase desumanizamos os que vieram antes de nós e passaram pelos mais absurdos desafios. Decerto, nossa ansiedade cada vez mais latente nos torna extremamente imediatistas. Sei que isso se deve a avançada tecnologia de hoje que nos dá respostas quase que instantaneamente. Não paramos mais para apenas esperar, só esperar, se o que precisa ser resolvido não está em nossas mãos diretamente. Essa tecnologia que encurtou distâncias foi a mesma que ajudou a proliferar um vírus no mundo inteiro. E na nossa ânsia pelo imediatismo - pela vontade um tanto imatura em fazer exatamente o que fazíamos antes do tal vírus - queremos que ele desapareça tão rapidamente quanto se espalhou. Nada na história voltou a ser como antes uma vez modificado. Os sobreviventes das crises históricas foram aos poucos inventando novas formas de viver. Somos apenas um pequeno recorte de mais um desafio da humanidade, com a sorte de estamos ligados ao mundo através da tecnologia e o azar de estarmos presos dentro do nosso próprio egocentrismo imediatista. (Francis Helena Cozta)

Estar

Há três anos eu cortava o cabelo no menor comprimento em que já tive. Foi a primeira vez com a nuca de fora sem fazer rabo de cavalo. Assim que cortei tive a certeza de que nunca mais teria o cabelo médio ou longo (a não ser para uma personagem). Balela. Menos de três meses depois eu não via a hora do cabelo crescer. Já não me reconhecia daquele jeito, sendo que cortei justamente porque não estava me reconhecendo do jeito que eu era antes do corte. Então quem eu era? Foi nesse processo (não do cabelo, mas da busca por quem se é) que percebi que não “sou” algo, mas que “estou” algo, e que tudo está em constante mutação. Cortes e rupturas são necessários não para que se permaneça de uma determinada nova forma, mas para que se amplie a possibilidade de tantas outras formas nunca antes imaginadas, pois o que predominava era a procura pelo ser, permanecer, firmar, consolidar. “Vou mudar para então permanecer ali.” O objetivo é permanecer e o caminho é a mudança? Que busca vã com resultados nunca satisfatórios, pois o novo também se torna velho. Permitir a mudança e depois não compactuar com a conformidade da permanência, é expandir a mente, o intelecto, o conhecimento, as possibilidades (inclusive de novas mudanças), pois como já disse Einstein, o que não se sabe, não existe. (Francis Helena Cozta)

Adversidade

Utilizar de maneira orgânica, com exatidão, as armas intelectuais adquiriras através do estudo certeiro no momento de extrema adversidade, talvez tenha se tornado um conceito de felicidade. Outro talvez me vem à mente: só o embasamento nos traz o equilíbrio necessário quando o mesmo é posto à prova. Decerto o conhecimento só está digerido de fato quando o aplicamos no momento adverso sem pestanejar ou até mesmo racionalizar tanto. Sartre dizia que não importa o que te fazem, mas sim o que você faz com o que te fazem, e sinceramente, só entendemos esse pensamento quando somos “obrigados” a colocá-lo em prática. Concluo a reflexão com uma frase de um dos melhores livros lidos na vida: Em Busca de Sentido do Viktor Frankl. “Quando não podemos mudar uma situação, somos desafiados a mudar a nós mesmos. Tudo pode ser tomado do homem, exceto uma coisa: a última das liberdades humanas – a escolha da atitude pessoal diante de um conjunto de circunstâncias – para decidir seu próprio caminho”. Finalizo lembrando que a proteção divina é extremamente poderosa e a gratidão por ela é gigante, mas esse assunto merece um pensamento a parte. (Francis Helena Cozta)